Primeiro profissional diplomado pela Associação Brasileira de Criadores de Cavalo Quarto de Milha, Emílio Fanton, conta a evolução da raça
31/01/2023 - 16:01
Emílio Fanton é médico veterinário e trabalha com cavalos Quarto de Milha há quase 50 anos. No Portal InfoHorse, veículo de Comunicação de Marcelo Pardini, que esteve no ar entre 2012 e 2018, certa feita ele escreveu sobre a história da raça. Confira o rico texto, devidamente reeditado em Agro MP, tamanha a sua relevância:
Homens de pujança, com vontade de trabalhar em prol da raça, usaram suas forças representativas e suas capacidades empreendedoras, dispondo de seu precioso tempo, para a fundação da ABQM (Associação Brasileira de Criadores de Cavalo Quarto de Milha), em 1969. A entidade já nasceu forte, pois a liderança de seus fundadores era evidente. Euclides Aranha Neto, José Eugênio Rezende Barbosa, Heraldo de Araújo Pessoa, Peter Emerth e muitos outros líderes da época uniram forças e, rapidamente, a estrutura física da associação estava pronta.
Por anos, a ABQM funcionou no segundo andar do consultório médico do Dr. Heraldo, em Bauru, contando com a dedicação dos funcionários Sakata e Joaquim. O primeiro diretor do Stud Book foi o Guido Petinazzi, que logo veio a falecer. Eu assumi em seguida, ficando mais de 10 anos à frente deste importante setor da associação.
O primeiro cavalo registrado no Brasil foi o Caracolito (Caracol x La Calavaza), em homenagem aos maiores proprietários da época, a Swift King Ranch. O Nº 2 foi o Double Bull (Double Devil x Burning Match), por justa homenagem ao Heraldo Pessoa. O terceiro foi o Famoso Brasil (Saltillo JR x ED D Brasil), de Fernando Pegoraro Barcelos. O número de animais a serem registrados foi aumentando gradativamente. Em 1974, lembro-me vagamente, registramos cerca de 100 animais. No ano seguinte, tal índice subiu 25%.
Eu viajava bastante. De Bauru a Araçatuba, visitando os primeiros criatórios. Passava pelas propriedades de Francisco Furquim Correia, Antonio Carlos Quartim Barbosa, Garon Maia, Vicente de Almeida Prado e entrava pelo Rio Feio nos Wirtz e Shweitzer. Saía por Presidente Prudente e voltava para casa com, no máximo, 25 animais inspecionados, todos meios-sangues. O meu carro na época era uma perua DKW e a viagem durava uma semana.
A divulgação da raça
Eu e o Heraldo Pessoa, acompanhado de sua esposa - Dona Missiza, e dos filhos - Heraldinho, Adriana, Lolly e Marcelo, muitas vezes saíamos para as visitas num carro Buick para Presidente Prudente, Rancharia, Araçatuba. Eram longas e cansativas viagens, porém, totalmente necessárias para a implantação da raça no Brasil.
A Swift King Ranch (SKR) e a família Rezende Barbosa, desde os primórdios, foram criadores de expressão. O Dr. Euclides Aranha e o Dr. Eugênio Rezende Barbosa sempre buscaram o melhor da genética norte-americana para trazer ao Brasil, influenciando de maneira determinante a formação do Quarto de Milha nacional. E a primeira demonstração de provas aconteceu na Fazenda Bartira, em Rancharia, com a participação de cinco cavaleiros - as filhas do Paulo Lane (gerente administrativo da SKR) e alguns peões da própria Bartira. E a primeira pista em recinto foi feita em Bauru, mais uma vez orientada pelo Heraldo Pessoa.
Surgimento dos grandes núcleos
Desde a fundação da ABQM, em 1969, a associação sempre foi comandada por importantes empresários, que se dedicaram em torná-la sólida e transparente. Tamanho crescimento muito se deve ao pessoal que começou toda esta história de sucesso. A raça deu grande salto após o desenvolvimento de alguns pólos de criação. Faço aqui uma pausa para me desculpar dos não citados, mas que certamente fazem parte disso tudo, como:
- Rancho QM: as famílias Medeiros, Jacinto da Silveira, Zamora, Dimanche, Delfim Miranda e Moraes Terra foram vitais para o crescimento do Quarto de Milha. Lá em Presidente Prudente eles fundaram uma das mais completas estruturas de provas do país.
- Clube do Laço: Em Bauru, os amigos Marcos Ferraz, Fauzet Farha, Pércio Norato, Reinaldo Contrera, Salvador de Almeida, Emílio Fanton, Amauri Bortoleto, José Carlos Marçano, Délio Coragem, Érico Braga, Francisco Bertolani e Willian Koury precederam a geração atual, que compõe um dos mais ativos núcleos da raça no Brasil.
- Ourinhos: Marcos Ferreira e Sá, acompanhado do pai - Jacintho, e dos irmãos, iniciou a Era da Corrida, cujo pontapé inicial fora dado pelo criador Samir Jubran.
Os grandes centros desenvolvimentistas do início eram Bauru, Prudente e Araçatuba. Como cavalo bom precisa de cavaleiro habilidoso, os grandes peões começaram a surgir nesta época. Mais uma vez, o Heraldo fez parte desta história. Em seus vagões de trens, no Bauru Haras (três vagões restaurados compunham a sede do local), ele pacienciosamente ensinava o então jovem Benedito Moreira a se aperfeiçoar em doma racional. Destaco também os cavaleiros Jairo Ferreira Martins e Marcos Toledo, dois grandes peões da raça Quarto de Milha.
Eu, por minha vez, tinha a incumbência de ensinar aos vaqueiros os processos técnicos da Medicina Veterinária dos Estados Unidos, usando longos textos do Quarter Horse Journal, traduzidos pelo Heraldo. As primeiras vulvoplastias em Quarto de Milha foram feitas por mim, pelos ensinamentos tirados dessas reuniões. Foram tempos muito interessantes. Inclusive, o primeiro número da revista Quarto de Milha, em preto e branco, traz as fotos dessa cirurgia. Na matéria, duas fotos saíram viradas ou invertidas. Vejam o efeito da Comunicação! Passados alguns anos, recebi uma égua com vulvoplastia feita ao contrário, exatamente como havia saído erroneamente na publicação.
Em 1975, a QM Brasil, liderada pelo Heraldo, fez a segunda viagem de intercâmbio cultural aos Estados Unidos. Fui patrocinado para ir até lá pela mesma. Fiz estágio com o Dr. Ward, no Veterinary Medical Center of Dallas. Aprendi o novo método de passar sonda e fui o 4º veterinário a fazer isso com frequência no Brasil. Tratava-se de um tabu e os grandes mestres da época - Dr. Reiner, Dr. Perdigão e Dr. José Pinto Moreira já o faziam. Tempos depois, eu já tinha 197 estagiários catalogados e difundi o corriqueiro ato entre meus colegas. O mesmo aconteceu com a vulvoplastia, controle folicular e outras técnicas que aprendi lá fora. Dentre inúmeras histórias interessantes, destaco uma envolvendo a reprodução. Disse ao Heraldo que uma de suas principais matrizes, a Hollytop (Top Bracket x Hollywood’s Duchess), estava prenhe. Ela era um “éguão” e nunca havia parido. Ele me disse: “se nascer macho, coloco o meu nome”. E assim foi: nasceu o Dr. Heraldo.
O Caio Ferraz foi o primeiro cavaleiro especial a fazer equoterapia, montando o cavalo Blue Jeans (Double Bull x Jeanette King), que o Heraldo deu de presente com uma corbeille de flores ao amigo Roberto Ferraz.
As negociações fervilhavam. As importações passaram a ser volumosas. Grandes garanhões da época aqui chegaram, como Trouble Two Times (Reger’s Skip x Spookey Trouble) e Sanjay (Freckles Playboy x Miss Pepsan), cujos filhos passaram a competir nas provas, tendo sempre a locução do Dr. Salvador Carlos de Almeida. Em suma, foram longas jornadas. Muito trabalho. Tudo feito com muita dedicação.
Caravanas e viagens
Os Clubes do Laço de todas as cidades recepcionavam as caravanas com almoço. A comida era boa e farta. As leitoas dos Biasi, de Novo Horizonte, e os churrascos em Bauru, Garça, Marília e Ourinhos eram diversão garantida. Tudo era carinhosamente feito e até mesmo lembrancinhas eram entregues às famílias.
Ônibus de competidores partiam para os lugares mais longínquos. Caminhões boiadeiros e caminhonetes levavam os animais, pois ainda não existiam os trailers. A estrutura toda se movimentava.
Curiosidades
Quando fomos a Cabo Frio, no Rio de Janeiro, muita gente não conhecia a praia. O Dorival Mariano, que trabalhava para o Márcio Tolentino, entusiasmado com as ondas, ficou sem calção depois de tomar um belo caldo. O saudoso Salvador de Almeida viajava numa caminhonete com os dois meninos - Carlos Henrique e Marcelo, e os cavalos. Raramente os pneus não estouravam. Fazemos aqui uma homenagem póstuma de honra a estes três baluartes da raça, que vieram a falecer tragicamente e nos deixaram muitas saudades.
Numa prova de fazenda em Avaí, a Dona Luzia, mãe do Érico Braga, preparou em lata grande de alumínio frango cozido com farinha de milho. Foi aí que o “frango com farofa” da D. Luzia ficou famoso, tornando-se a refeição dos meninos nas paradas de viagem a Brasília, Goiânia e Maringá. O Zé Luiz Alcoléa levava os brigadeiros.
Temos que tirar o chapéu para os Cotrim. Com caravanas de 40 pessoas, eles saíam de Niterói, no Rio de Janeiro, com ônibus lotado, 04 ou 05 caminhões e mais as caminhonetes. Vinha a família toda, avós, pais, mães, cozinheiros, motoristas, pessoal de apoio, peões. Começaram timidamente em Ourinhos e depois não perdiam uma festa sequer. Os almoços para todos que lá chegavam eram à base de camarões. E mais festas de aniversários e bailes corriam noite adentro sob as lonas. Em Ourinhos, por sinal, o senhor Jacintho Ferreira e Sá, a Dona Lourdinha e o Marcos nos recebiam na Fazenda Furninhas com belos almoços.
Os juízes
O primeiro curso para juiz foi em Bauru, onde muita gente participou. Por Regulamento, só poderiam ser juízes os profissionais formados em Medicina Veterinária, Agronomia ou Zootecnia. Num primeiro momento, só sobrou eu. Aos poucos outros surgiram, mas aqui temos que parar e homenagear o Francisco Bertolani e o William Koury, que incentivaram a criação de cursos para a formação de julgadores. Presto aqui também uma homenagem justa ao Luiz Antonio Boldrini, pelo qual cumprimentamos a todos os outros pela dedicação e capacidade. Este jovem faleceu em acidente, trabalhando pelo cavalo.
Fase mediana
As modalidades cresciam e o cavalo também. Surge um forte incentivador, Macário Peres Pria. Grande entusiasta, que trouxe cavalos dos Estados Unidos e também um tratador norte-americano, ao qual tirou uma carteira de identidade com o nome de “Benedito de Oliveira”, profissional este que há muito tempo regularizou sua permanência no Brasil. Sabe de quem estou falando? Kenny Knowlton! O Macário divulgou o cavalo de Norte a Sul do país, com o Kenny, um trailer e os animais de Apartação.
Na década de 80 surgiram os jovens competidores, que hoje estão com seus 40 e tantos anos. Foram muitos. Fazemos alusão a alguns que ficaram na lembrança: William Koury Filho (hoje um dos mais importantes juízes de Zebu do país); Paulo Koury Neto (mestre na prova de Rédeas); Eduardo Borba (iniciou a doma racional no Brasil); Franco Bertolani (craque em Rédeas, que fez fama na Itália e nos Estados Unidos); Alexandre Ramos (professor de Rédeas, hoje dono de leiloeira); Ricardo Fanton (competidor de alto nível); Paulo Farha (empresário da equinocultura, que chegou à presidência da ABQM por dois mandatos); Wilson Dosso Filho (competidor e dono de firma leiloeira); Bortoleto (lembrei-me também desses meninos, que hoje são homens de bem no comércio).
Da família do Jairo Pimenta, três irmãos competiam. Certo dia, em Prudente, o Ricardo Fanton, o Patrick Ferro e o Fábio Pimenta sumiram. Supostamente perdidos, voltaram com um pacotinho debaixo do braço. Traziam um colar de plástico para as mães, comprados com o dinheirinho da prova. O pacote do Fabinho era maior. O Jairo perguntou o que era? “Uma boneca”, respondeu. Uma boneca? Que é isto menino? “É, comprei pra minha namorada!” (risos).
O julgamento cruel
Numa prova de halter, no Parque da Água Branca, em São Paulo, o médico Ivanildo Nascimento, indignado pela desclassificação de seu cavalo de Vaquejada que estava na pista de Conformação, arrancou o chapéu da cabeça do juiz, pisoteando-o com raiva. Depois, arrependido, chegou ao profissional e disse: “senhor juiz, peço-lhe desculpas pelo que fiz. Tome aqui o dinheiro pra comprar outro chapéu”.
O Marcão Toledo e o filho Marquinho foram contratados pelo Naji Nahas para receber alguns cavalos em Viracopos. Devido ao atraso do avião, os dois foram jantar na casa do contratante. Marcão orientou o menino a não comer muito e a falar pouco. Pois bem. Ao lavarem as mãos, a argola de prata de apoio da toalha no banheiro já despencou. Depois, sentados à mesa, o jantar de gala corria a rodo e conversas sobre linhagens de Corrida surgiam: Lady’s Moon, Shady Leo, Dash For Cash, El Zorrero. Em dado momento, “a muié” chegou e falou baixinho na “oreia” do anfitrião. O Naji parou e disse: “senhores, tenho uma triste notícia a lhes dar: Lady Di morreu”. O Marcão não se fez de rogado e logo perguntou: “Trabaio ou Corrida? Deve ser Corrida, porque o Lady’s Moon era Corrida” (sic).
Amazona-símbolo
Como uma Rapunzel saída de um Conto de Fadas, com seus cabelos dourados cuidadosamente arrumados em uma longa trança, surge nas pistas de Western Pleasure a Dona Gilda de Miranda Valle Nicolau. A harmonia de sua bela figura, montada sempre em trajes de gala, impressionava pela elegância, altivez, meiguice e perseverança. Nas justas homenagens prestadas, Gilda Nicolau será sempre lembrada como a amazona-símbolo da raça Quarto de Milha.
O Brasil lá fora
Por um bom tempo, a ABQM incentivou representações do nosso pessoal lá fora. Participamos do Campeonato Mundial de Jovens, no Canadá, na Austrália e nos Estados Unidos. Em 1999, foi fundada a ABQM-Jovem, que lutou muito para crescer, entretanto, não encontrou eco para expandir.
O esporte e as provas
No início eram Etapas tímidas, com 30 a 50 inscrições. Passamos para 100, 150, e ao chegarmos à casa das 450, a estrutura como um todo exigia mudanças. Os diretores de Esporte, Bertolani e William Koury, na gestão do Macário e depois na do Douglas Ferro, na década de 80, montaram um caminhão ¾ baú, com todos os equipamentos de provas. Este percorria e atendia as competições regionais.
Os Campeonatos Nacionais se faziam em até 10 Etapas, sendo elas realizadas em vários Estados. Aos poucos, cada núcleo desenvolveu suas estruturas e, hoje, cada região tem os seus próprios torneios.
Devemos fazer alusão ao Quarto de Milha de Corrida, com grandes nomes em sua base de fundação, como: Samir Jubran, Fernando Muniz de Sousa, Wellington Germano de Queiroz, João Marigo, Jorge Rudney Atalla, Quartin Barbosa, Swift King Ranch, Ovídio Vieira Ferreira, Marcelo Borges de Andrade, Luiz Bocalato, José Nelson Fakri, Sérgio Nouguês e tantos outros que hoje são seus seguidores e colaboram para o crescimento do setor.
Esta é apenas uma pequena parcela de uma longa história da qual honrosamente participo há 50 anos. Dela, fazem parte centenas de pessoas, montadas ou não, numa modalidade aberta a todos, tendo sempre um grande troféu recebido a cada dia: prêmio fabricado por este ser capaz de agregar, diminuir as distâncias e as diferenças entre os homens, este nosso bravo herói, o cavalo Quarto de Milha.